Allen Ginsberg |
Um sapo bóia
num jarro de farmácia:
chuva de verão nas calçadas cinzas.
A frog floating
in a drugstore jar:
summer rain on grey pavements.
Lendo haiku
eu sou infeliz,
saudade do Sem Nome.
Reading haiku
I am unhappy,
longing for the Nameless.
Olhando por cima do ombro:
minhas costas cobertas
de cereja em flor.
Looking over my shoulder
my behind was covered
with cherry blossoms.
Haiku de inverno
eu não sabia os nomes
das flores — agora
meu jardim já era.
Winter Haiku
I didn't know the names
of the flowers — now
my garden is gone.
Fantasma de minha mãe:
primeira coisa que achei
na sala do estar.
My mother's ghost:
the first thing I found
in the living room.
Estapeei o mosquito
e cadê?
Que me feito a fazer isso?
I slapped the mosquito
and missed.
What made me do that?
O primeiro destes haikus é obviamente uma referência ao famoso haiku de Matsuó Bashô:
O velho tanque —
uma rã mergulha,
barulho de água.[1]
Ginsberg reconstrói a imagem sob um novo aspecto, desolador e estéril. Aliás, diga-se de passagem, Ginsberg não é o único a dialogar com o tal poema do Bashô, Paulo Leminski também o fez — algumas vezes, uma delas evocando kawásu, o sapo, como o grande totem do haiku: “sapo nu tem voz de arauto”: Manoel de Barros —. Leminski chamou pra conversa com Bashô outro poeta: Mallarmé:
Mallarmé Bashô[2]
um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço
Nem mesmo o salto mutante do gafanhoto de e.e. cummings o faz desaparecer: o pouso sempre incerto o reconstrói. Ou mesmo será capaz um vidro de formol conservar na eternidade o grande totem desaparecente? Assim seu poder se amplia: estamos todos foradentro do velho poço: remédio. E dali de nós, e sobre nós, os respingos: chuva de verão. Odin deu o olho direito a Mimir pra beber de seu poço: sabedoria, remédio da ignorância. No oráculo de Trofônio, os consulentes imolavam um bode pra ter acesso aos Hermes que lhes davam duas taças pra beber: oblívio e lembrança.
*
Ao olhar pelos ombros, o sujeito lírico não apenas vê flores de cerejeira, mas vê cerejas florescendo: “cherry blossoms” carrega a ambigüidade de significar tanto “flores de cerejeira”, quanto “cereja floresce”. Certamente que se houvesse uma opção clara pelo segundo sentido haveria o relativo that ligando cherry com blossoms. Ao mesmo tempo não há artigo que determine o sintagma nominal “flores de cerejeira”, o que enfraqueceria a ambigüidade, mas Ginsberg quer a kakekotoba, então ele pendura tudo que pode. Eu tentei manter a tensão semântica.
*
Lá pelas flores nevadas, optei por “meu jardim já era” em lugar do óbvio “meu jardim se foi”, por uma questão melopaica do original, a aliteração em /g/ [garden-gone], assim ficamos quites em /Ʒ/ [jardim-já], embora com um compasso bem diferente: antes ——u——u, agora —u———u.
No haiku da mãe fantasmagórica, claramente temos a oposição do sintagma “living room” com a idéia da mãe morta, sobretudo pelo fato de “living” poder significar não a instrumentalidade de “room”, mas seu sopro de vida, sua vivência, numa ironia profunda em que a sala, coisa, está viva, mas não a mãe. Creio que, apesar de fraca, a tradução esperada por “sala de estar” mantém, nalgum nível, tal oposição, i.e.: estar-não estar. Entanto, a ironia refinada perde-se, daí a opção pelo artigo, por determiná-lo: “o estar”; creio que permanece sutil a relação irônica, com esta simples alteração: personifica-se a idéia infinita do verbo e dá-se a este ente inconjunto a posse do ambiente-coisa. O fantasma nada possui, nada tem, nada habita. É miríade. Sonho. Mas também essa sala torna-se a sala onde qualquer coisa pode estar, onde o inabitável faz-se habitável uma vez mais: o ensejo fantasmagórico.
*
Vi uns físicos afirmarem que as partículas subatômicas podem estar em vários lugares ao mesmo tempo… Realidade não muito distante do incômodo mosquito que nos chateia e que não conseguimos acertar. Desde que o mundo é mundo é assim, já o disse o antigo grego Meleagro[3] (c. 130—60 a.C.):
Mosquitos estridentes, despudorados do sangue humano
sugadores, bestas dípteras e noturnas,
rogo-vos: à Zenófila em trégua concedei tranqüilo sono.
Eis-me: devorai de meus membros a carne toda.
Ora, mas para que vos canto em vão e, feras sem tino,
vos fartais aquecidos por pele tão pura?
Malditas criaturas, a audácia contende, vos previno
ou sabereis de minhas mãos ciumentas a força bruta.
Assim está também o mosquito de Ginsberg. Falo do verbo to miss, que pode dizer perder, sentir falta, falhar/errar/deixar escapar. Nenhuma destas noções o beat clarifica; não há um maldito objeto que o faça. Então optei por uma expressão de nossa língua igualmente multissemântica: “cadê?”. Assim não temos a certeza se o sujeito lírico acertou o mosquito e o perdeu/deixou pra lá, se ele acertou e numa ascese budista se arrependeu do fato e sente saudades, ou se o infeliz nem acertou a coisa que, fractal que é, sumiu. Além disso, no mosquito esmagado (?), temos, no último verso, um tempo pendurado, quero dizer: uma leitura sugerida nas entrelinhas é “o que me fez fazer isso?” / “what made me to do that?”, na verdade o mais esperado; mas com uma leve alteração, a supressão de to, Ginsberg cria uma ambigüidade, graças também a similaridade desinencial entre o pretérito e o particípio passado. Feito ou fez? Há no feito, o fato, o que o fez. E o faz? Esta é a grandeza do haiku: sem grande força, com uma leve torção do pulso: um homem posto em duas metades, cortado pelo fio da kataná. Ele próprio mosquito, elétron. Mal-e-porcamente tentei efeito similar.
[1] Tradução de Paulo Franchetti. Cf. meu artigo “O Tio Sol (Nascente?) de e.e. cummings: haiku-jin” [aqui].
[2] In: La vie en close. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1994.
[3] Da Antologia Palatina, V, 151. Tradução de Henrique Cairus. In: Inimigo Rumor.
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Irwin Allen Ginsberg (Newark, Nova Jersey, 3 de junho de 1926 – 5 de abril de 1997) foi um poeta americano da geração beat, que ficou conhecido pelo seu livro de poesia "Howl" (1956). Wikipédia
Irwin Allen Ginsberg (Newark, Nova Jersey, 3 de junho de 1926 – 5 de abril de 1997) foi um poeta americano da geração beat, que ficou conhecido pelo seu livro de poesia "Howl" (1956). Wikipédia
cara, achei que tu não curtia ginsberg, leia odiava, mas ficou legal/interessante tua analise e tradução, curti [cade o botãozinho do face!?]
ResponderExcluiro botãozinho fica na coluna da direita... não é nas postagens... nao consegui por nas postagens ainda...
ResponderExcluirmas eu odiava mesmo... hahahaha
é que eu só conhecia o pior deles em traduções horrendas... mas fui ler em inglês e vi o qanto ginsberg é foda no original... pqa tradução do "uivo" é uma droga... to terminando a tradução da Plutonian Ode dele... um poema sensasional! mas enorme...