26.7.11

Allen Ginsberg (I): entre sapos, flores e mosquitos: haikubeat

Allen Ginsberg


Um sapo bóia
num jarro de farmácia:
chuva de verão nas calçadas cinzas.
A frog floating
in a drugstore jar:
summer rain on grey pavements.

Lendo haiku
eu sou infeliz,
saudade do Sem Nome.
Reading haiku
I am unhappy,
longing for the Nameless.

Olhando por cima do ombro:
minhas costas cobertas
de cereja em flor.
Looking over my shoulder
my behind was covered
with cherry blossoms.

Haiku de inverno
eu não sabia os nomes
das flores — agora
meu jardim já era.
Winter Haiku
I didn't know the names
of the flowers — now
my garden is gone.

Fantasma de minha mãe:
primeira coisa que achei
na sala do estar.
My mother's ghost:
the first thing I found
in the living room.

Estapeei o mosquito
e cadê?
Que me feito a fazer isso?
I slapped the mosquito
and missed.
What made me do that?


O primeiro destes haikus é obviamente uma referência ao famoso haiku de Matsuó Bashô:
O velho tanque —
uma rã mergulha,
barulho de água.[1]
Ginsberg reconstrói a imagem sob um novo aspecto, desolador e estéril. Aliás, diga-se de passagem, Ginsberg não é o único a dialogar com o tal poema do Bashô, Paulo Leminski também o fez — algumas vezes, uma delas evocando kawásu, o sapo, como o grande totem do haiku: “sapo nu tem voz de arauto”: Manoel de Barros —. Leminski chamou pra conversa com Bashô outro poeta: Mallarmé:

Mallarmé Bashô[2]

                um salto de sapo
jamais abolirá
                o velho poço

Nem mesmo o salto mutante do gafanhoto de e.e. cummings o faz desaparecer: o pouso sempre incerto o reconstrói. Ou mesmo será capaz um vidro de formol conservar na eternidade o grande totem desaparecente? Assim seu poder se amplia: estamos todos foradentro do velho poço: remédio. E dali de nós, e sobre nós, os respingos: chuva de verão. Odin deu o olho direito a Mimir pra beber de seu poço: sabedoria, remédio da ignorância. No oráculo de Trofônio, os consulentes imolavam um bode pra ter acesso aos Hermes que lhes davam duas taças pra beber: oblívio e lembrança.

*

Ao olhar pelos ombros, o sujeito lírico não apenas vê flores de cerejeira, mas vê cerejas florescendo: “cherry blossoms” carrega a ambigüidade de significar tanto “flores de cerejeira”, quanto “cereja floresce”. Certamente que se houvesse uma opção clara pelo segundo sentido haveria o relativo that ligando cherry com blossoms. Ao mesmo tempo não há artigo que determine o sintagma nominal “flores de cerejeira”, o que enfraqueceria a ambigüidade, mas Ginsberg quer a kakekotoba, então ele pendura tudo que pode. Eu tentei manter a tensão semântica.

*

Lá pelas flores nevadas, optei por “meu jardim já era” em lugar do óbvio “meu jardim se foi”, por uma questão melopaica do original, a aliteração em /g/ [garden-gone], assim ficamos quites em /Ʒ/ [jardim-já], embora com um compasso bem diferente: antes ——u——u, agora —u———u.


No haiku da mãe fantasmagórica, claramente temos a oposição do sintagma “living room” com a idéia da mãe morta, sobretudo pelo fato de “living” poder significar não a instrumentalidade de “room”, mas seu sopro de vida, sua vivência, numa ironia profunda em que a sala, coisa, está viva, mas não a mãe. Creio que, apesar de fraca, a tradução esperada por “sala de estar” mantém, nalgum nível, tal oposição, i.e.: estar-não estar. Entanto, a ironia refinada perde-se, daí a opção pelo artigo, por determiná-lo: “o estar”; creio que permanece sutil a relação irônica, com esta simples alteração: personifica-se a idéia infinita do verbo e dá-se a este ente inconjunto a posse do ambiente-coisa. O fantasma nada possui, nada tem, nada habita. É miríade. Sonho. Mas também essa sala torna-se a sala onde qualquer coisa pode estar, onde o inabitável faz-se habitável uma vez mais: o ensejo fantasmagórico.

*

Vi uns físicos afirmarem que as partículas subatômicas podem estar em vários lugares ao mesmo tempo… Realidade não muito distante do incômodo mosquito que nos chateia e que não conseguimos acertar. Desde que o mundo é mundo é assim, já o disse o antigo grego Meleagro[3] (c. 130—60 a.C.):

Mosquitos estridentes, despudorados do sangue humano
                   sugadores, bestas dípteras e noturnas,
rogo-vos: à Zenófila em trégua concedei tranqüilo sono.
                   Eis-me: devorai de meus membros a carne toda.
Ora, mas para que vos canto em vão e, feras sem tino,
                   vos fartais aquecidos por pele tão pura?
Malditas criaturas, a audácia contende, vos previno
                   ou sabereis de minhas mãos ciumentas a força bruta.

Assim está também o mosquito de Ginsberg. Falo do verbo to miss, que pode dizer perder, sentir falta, falhar/errar/deixar escapar. Nenhuma destas noções o beat clarifica; não há um maldito objeto que o faça. Então optei por uma expressão de nossa língua igualmente multissemântica: “cadê?”. Assim não temos a certeza se o sujeito lírico acertou o mosquito e o perdeu/deixou pra lá, se ele acertou e numa ascese budista se arrependeu do fato e sente saudades, ou se o infeliz nem acertou a coisa que, fractal que é, sumiu. Além disso, no mosquito esmagado (?), temos, no último verso, um tempo pendurado, quero dizer: uma leitura sugerida nas entrelinhas é “o que me fez fazer isso?” / “what made me to do that?”, na verdade o mais esperado; mas com uma leve alteração, a supressão de to, Ginsberg cria uma ambigüidade, graças também a similaridade desinencial entre o pretérito e o particípio passado. Feito ou fez? Há no feito, o fato, o que o fez. E o faz? Esta é a grandeza do haiku: sem grande força, com uma leve torção do pulso: um homem posto em duas metades, cortado pelo fio da kataná. Ele próprio mosquito, elétron. Mal-e-porcamente tentei efeito similar.



[1] Tradução de Paulo Franchetti. Cf. meu artigo “O Tio Sol (Nascente?) de e.e. cummings: haiku-jin” [aqui].
[2] In: La vie en close. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1994.
[3] Da Antologia Palatina, V, 151. Tradução de Henrique Cairus. In: Inimigo Rumor.

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Irwin Allen Ginsberg (NewarkNova Jersey3 de junho de 1926 – 5 de abril de 1997) foi um poeta americano da geração beat, que ficou conhecido pelo seu livro de poesia "Howl" (1956). Wikipédia

2 comentários:

  1. cara, achei que tu não curtia ginsberg, leia odiava, mas ficou legal/interessante tua analise e tradução, curti [cade o botãozinho do face!?]

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  2. o botãozinho fica na coluna da direita... não é nas postagens... nao consegui por nas postagens ainda...

    mas eu odiava mesmo... hahahaha
    é que eu só conhecia o pior deles em traduções horrendas... mas fui ler em inglês e vi o qanto ginsberg é foda no original... pqa tradução do "uivo" é uma droga... to terminando a tradução da Plutonian Ode dele... um poema sensasional! mas enorme...

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