Dave McKean |
… thy rope of sands…[1]
George Herbert (1593-1623)
A linha consta de um número
infinito de pontos; o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um
número infinito de planos; o hipervolume, de um número infinito de volumes…
Não, decididamente não é este, more geometrico[2], o melhor modo de começar meu relato. Afirmar que é verídico é
agora uma convenção de todo relato fantástico; o meu, no entanto, é verídico.
Eu
vivo só, em um quarto andar da Rua Belgrano. Há uns meses, de tardinha, ouvi
baterem à porta. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto, de traços
embaçados. Ou a minha miopia os viu assim. Todo seu aspecto era de pobreza
decente. Estava de cinza, trazia uma maleta cinza na mão. Em seguida senti que era
estrangeiro. No princípio o achei velho; logo me dei conta de que tinha me
enganado sua escassa cabeleira loira, quase branca, à maneira escandinava. No
curso de nossa conversação, que não duraria uma hora, soube que vinha das
Órcadas[3].
Mostrei-lhe
uma cadeira. O homem demorou um pouco a falar. Exalava melancolia, como eu
agora.
—
Vendo bíblias — disse-me.
Não
sem pedantismo o contestei:
—
Nesta casa há algumas bíblias inglesas, inclusive a primeira, a de John Wiclif.
Tenho ainda a de Cipriano de Valera, a de Lutero, que literariamente é a pior,
e um exemplar latino da Vulgata. Como você vê, não são exatamente bíblias o que
me falta.
Ao
fim de um silêncio me contestou:
—
Não vendo só bíblias. Posso mostrar-lhe um livro sagrado que talvez lhe interesse.
O adquiri nos confins de Bikanir[4].
Abriu
a maleta e o deixou sobre a mesa. Era um volume in-oitavo[5],
encadernado em tecido. Sem dúvida tinha passado por muitas mãos. Examinei-o;
seu inusitado peso me surpreendeu. Na lombada dizia Holy Writ[6]
e abaixo Bombay[7].
—
Será do século dezenove… — observei.
—
Não sei. Não o soube nunca — foi a resposta.
Abri-o
ao azar. Os caracteres eram-me estranhos. As páginas, que me pareceram gastas e
de pobre tipografia, estavam impressas em duas colunas à maneira de uma bíblia.
O texto era prensado e estava ordenado em versículos. No cabeçalho das páginas
havia algarismos arábicos. Chamou-me a atenção que a página par levara o número
(digamos) 40.514 e a ímpar, a seguinte, 999. Passei a página: o dorso estava
numerado com oito algarismos. Levava uma pequena ilustração, como é de uso nos
dicionários: uma âncora desenhada à pena, como pela desastrada mão de uma
criança.
Foi
então que o desconhecido me disse:
—
Observe-a bem. Já não a verá nunca mais.
Havia
uma ameaça na afirmação, mas não na voz.
Fixei-a
na mente e fechei o volume. Imediatamente o abri. Em vão busquei a figura da
âncora, folha por folha. Para esconder meu desconcerto, disse-lhe:
—
Trata-se de uma versão da Escritura em alguma língua indostânica, não é
verdade?
—
Não — replicou-me.
Logo
baixou a voz como para confiar-me um segredo:
—
O adquiri em um povoado da planície, em troca de umas rúpias e da Bíblia. Seu
possuidor não sabia ler. Suspeito que no Livro dos Livros viu um amuleto. Era
da casta mais baixa: ninguém podia pisar em sua sombra sem se contaminar. Me
disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia
têm nem princípio nem fim.
Pediu-me
que buscasse a primeira página.
Apoiei
a mão esquerda sobre a capa e abri com o dedo polegar quase pegado ao índice.
Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a capa e a mão. Era
como se brotassem do livro.
—
Agora busque o final.
Também
fracassei; apenas cheguei a balbuciar com uma voz que não era a minha:
—
Isto não pode ser.
Sempre
em voz baixa o vendedor de bíblias disse-me:
—
Não pode ser, mas é. O número de
páginas desse livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a
última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar
a entender que os fins de uma série infinita admitem qualquer número.
Depois,
como se pensasse em voz alta:
—
Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é
infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.
Suas
considerações irritaram-me. Perguntei-lhe:
—
Você é religioso, sem dúvida?
—
Sim, sou presbiteriano. Minha consciência está clara. Estou certo de não ter
enganado o nativo quando lhe dei a Palavra do Senhor em troca de seu livro
diabólico.
Assegurei-o
que de nada tinha que censurar-se, e perguntei-lhe se estava de passagem por
estas bandas. Respondeu-me que dentro de uns dias pensava em voltar a sua
pátria. Foi então quando soube que era escocês, das ilhas Órcadas. Disse-lhe
que eu gostava muito da Escócia por amor a Stevenson e a Hume.
—
E de Robbie Burns — corrigiu.
Enquanto
falávamos eu seguia explorando o livro infinito. Com falsa indiferença lhe
perguntei:
—
Você se propõe a oferecer este curioso espécime ao Museu Britânico?
—
Não. Se o ofereço a você… — replicou-me, e fixou-se numa soma elevada.
Respondi,
com toda a verdade, que essa soma era inacessível para mim e fiquei pensando.
Ao cabo de uns poucos minutos tinha tecido meu plano.
—
Lhe proponho uma troca — disse-lhe —. Você obteve este volume por umas rúpias e
pela Sagrada Escritura; eu lhe ofereço o montante de minha aposentadoria, que
acabo de receber, e a Bíblia de Wiclif em letra gótica. A herdei de meus pais.
—
A black letter Wiclif! — murmurou.
Fui
ao meu quarto e trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Passou as folhas e observou a
capa com fervor de bibliófilo.
—
Trato feito — disse-me.
Surpreendeu-me
que não pechinchara. Só depois compreenderia que tinha entrado em minha casa
com a decisão de vender o livro. Não contou as notas, e as guardou.
Falamos
da Índia, das Órcadas e dos jarls[8]
noruegueses que as governaram. Era de noite quando o homem se foi. Não o voltei
a ver nem soube seu nome.
Pensei
em guardar o Livro de Areia no oco que havia deixado o Wiclif, mas optei por
fim por escondê-lo atrás de uns volumes incompletos de As mil e uma noites.
Deitei
e não dormi. Às três ou quatro da manhã acendi a luz. Busquei o livro
impossível e passei as folhas. Em uma delas vi gravada uma máscara. O cabeçalho
levava um algarismo, já não sei qual, elevado à nona potência.
Não
mostrei a ninguém meu tesouro. À alegria de possuí-lo agregou-se o temor de que
mo roubassem, e depois o receio de que não fosse verdadeiramente infinito.
Essas duas inquietudes agravaram minha já velha misantropia. Restavam-me uns
amigos; deixei de vê-los. Prisioneiro do Livro, quase não ia à rua. Examinei
com uma lupa a lombada e as capas, e descartei a possibilidade de algum
artifício. Comprovei que as pequenas ilustrações distavam duas mil páginas uma
da outra. Fui anotando-as em agenda alfabética, que não demorei a preencher.
Nunca se repetiram. De noite, nos escassos intervalos que me concedia a
insônia, sonhava com o livro.
Declinava
o verão, e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar
que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e apalpava-o com dez
dedos com unhas. Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que caluniava
e corrompia a realidade.
Pensei
no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente
infinita e sufocaria de fumaça o planeta.
Lembrei
ter lido que o melhor lugar para esconder uma folha é um bosque. Antes de me
aposentar trabalhava na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros;
sei que à mão direita do átrio uma escadaria curva desaba no sótão, onde estão
os periódicos e os mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para perder o
Livro de Areia em uma das prateleiras úmidas. Tratei de não me fixar a que
altura nem a que distância da porta.
Sinto
um pouco de alívio, mas não quero nem passar pela Rua México.
______________________
A presente tradução foi feita a partir do texto estabelecido pela edição argentina das obras completas do autor.
Borges,
Jorge Luis. El Libro de Arena. In: ______. Obras Completas (1975-1985). Emecé
editores: Buenos Aires. pp 68—71.
[1] Do
ingl. “… tua corda de areia…” [N.T. Assim como as seguintes.]
[2] Do lat. "mais geométrico". É expressão renascentista que refere-se à lógica das proporções divinas na natureza usadas nas artes, inclusive na tipografia. O termo é usado pela filosofia também, como referência a um discurso argumentativo lógico, silogístico, ou ainda, em outra acepção, heurístico. O termo nasce na Geometria.
[2] Do lat. "mais geométrico". É expressão renascentista que refere-se à lógica das proporções divinas na natureza usadas nas artes, inclusive na tipografia. O termo é usado pela filosofia também, como referência a um discurso argumentativo lógico, silogístico, ou ainda, em outra acepção, heurístico. O termo nasce na Geometria.
[3]
Arquipélago ao norte da Escócia.
[4]
Cidade da Índia, no Rajastão.
[5]
Tipo de encadernação francesa de tamanho 16,5 x 10,5 cm.
[6] Do
ingl. “Sagrada Escritura”.
[7]
Bombaim ou Mumbai, em ing. Cidade da Índia.
[8] Nobres
entre os nórdicos, pejorativamente chamados de vikings pelos Anglo-Saxões.
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Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Wikipédia
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Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Wikipédia
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