De todas as linhas de pensamento,
tradição e crença que compõem o universo islâmico, o sufismo em seu aspecto
doutrinal sobressai como o mais intacto, a maior pureza islâmica: a linha
central. Oponentes do sufismo freqüentemente acusam-no como tendo se originado
fora do Islã, mas uma revisão minuciosa das várias escolas de filosofia e
teologia, e uma comparação com o Islã “primordial” como revelado no Corão e no
Hadith (discursos autênticos do Profeta Muhammad), provarão o clamor dos sufis
pela centralidade, pela estrita aderência à original pureza da Revelação.
No contexto da história do
pensamento, de fato, o sufismo — sempre insistindo em um retorno às fontes da
Tradição — pode ser visto como para ter funcionado às vezes como uma reação
positiva e saudável à atividade racional extrema dos filósofos e teólogos. Para
os sufis, o caminho até o conhecimento espiritual — até a Certeza — nunca
poderia ser limitado ao processo da atividade racional ou puramente
intelectual, sem conhecimento sapiente[1]
(zawq, “gosto”) e a experiência imediata, direta do Coração. A Verdade, eles
crêem, pode ser vista e descoberta somente com o completo ser de cada um; nem
estiveram eles satisfeitos meramente em saber essa Verdade. Insistem numa total
identificação: um “falecimento” do conhecedor no Conhecido, do sujeito no
Objeto do conhecimento. Assim, quando no quarto/décimo século, o sufi Hallaj
proclamou “Eu sou a Verdade” (e foi martirizado por isso pelas autoridades exotéricas),
não violou o “Primeiro Pilar” do Islã, a crença na Unidade (tawhid), mas
simplesmente declarou a verdade desde a boca da Verdade. Então os sufis crêem.
Essa insistência do envolvimento
total na realização “mística”, e no entendimento participativo da doutrina
religiosa, distinguiu agudamente o sufismo de outras escolas islâmicas de
saber. De fato, considerando eles mesmos a verdade do Islã, os sufis apareceram
como marginais não somente para os filósofos e teólogos, mas ainda para os
Muslims “ordinários”. Suas peculiaridades, suas distinções, manifestaram-se em
vários aspectos de suas vidas: suas atividades diárias, seu culto, relações
sociais, e inclusive estilo ou meios de expressão. Como místicos de todas as
Tradições, eles tenderam a refazer a linguagem e a forma para seus próprios
propósitos, e como em todas as civilizações Tradicionais, a potência e
direcionamento de sua expressão tendeu a escoar e permear outras áreas não
diretamente relacionadas ao misticismo em sentido estrito: literatura, as artes
e ofícios, etc.
Deixando esse Mundo Escondido
Buda fundou seu Caminho sobre o
fato humano do sofrimento. O Islã dá à situação básica na qual nos encontramos uma
interpretação um pouco diferente: o homem em seu estado ordinário de
consciência está literalmente adormecido (“e quando ele morre ele desperta”,
como Mohammad disse). Ele vive em um sonho, seja diversão ou sofrimento — uma
existência fenomenal e ilusória. Somente seu ser inferior está desperto, sua
“alma carnal”. Sinta-se ou não assim, é miserável. Mas potencialmente a
situação pode ser mudada, pois em última instância o homem não é idêntico ao
seu ser inferior. (O Príncipe de Balkh, Ibrahim Adham, perdido no deserto
enquanto caçava, perseguiu um cervo mágico, que se virou pra ele e perguntou,
“Você nasceu pra isso?”) A autêntica existência do homem está no Divino; ele
tem um alto Ser, que é verdadeiro; ele pode alcançar felicidade, ainda antes da
morte (“Morra antes que tu morras”, disse o Profeta). O chamado vem: ao vôo,
migração, uma jornada além das limitações do mundo e do ser.
Despertar
Aprisionada na jaula do mundo (o
mundo em seu sentido negativo, “mundano”, não em sentido positivo de
mundo-como-ícone ou Manifestação Divina), o homem está exilado e esquecido de
seu verdadeiro lar. Para tomar sua parte no Pacto[2],
para ser fiel à sua promessa, ele deve atacar o Caminho desde o sono ao
despertar. É só o raro santo pra quem esse Caminho dura não mais que um único
passo, embora em teoria tudo que é preciso é “dar a volta” ou “virar ao avesso”
e ser o que cada um é. Para muitos perscrutadores o Caminho é longo; um sufi
fala sobre “uns milhares e um” diferentes passos.
“Todas as coisas perecem, salvo
Sua Face”; o primeiro passo do Caminho é começar a contemplar a futilidade do
mundo de pó, o mundo em que o ser inferior de cada um está condenado. O
perscrutador tem de renunciar a tudo isso, inclusive ao próprio ser, e buscar
este que é Eterno, Sempre o Último. Precisa viajar desde as coisas rumo ao
Nada, desde a existência rumo a Não-Existência.
Quantos caem fora de propósito?
Nosso estado presente é de um esquecimento em direção ao Divino — o verdadeiro
Ser — e de lembrança das relações mundanas e do ser inferior. A cura para isso
é uma re-volta: lembrança do verdadeiro Ser, o Divino interior, e o
esquecimento em direção a todas as demais coisas.
No sufismo, a técnica básica para
isso é a invocação ou “lembrança” (zekr) do Nome Divino, que é misteriosamente
idêntico ao Ser Divino. Através dessa disciplina os fragmentos de nossas mentes
sem direção são re-reunidos, nosso impulso externo tornado ao interior e
concentrado. Este é o ato dum amante que não pensa em nada exceto em seu
bem-amado.
Traduzido a partir do original em: http://hermetic.com/bey/
Traduzido a partir do original em: http://hermetic.com/bey/
[1]
Apesar da palavra poder remeter ao conhecimento erudito, note-se que a raiz
latina sap- introduz a idéia de
conhecimento pela experiência sensorial, e foi o adjetivo sapiential o usado por Wilson. O sap- latino origina em português os vocábulos saber e sabor. (N.T.)
[2] Covenant no original, que diz respeito,
teologicamente falando, às promessas de Deus aos homens. (N.T.)
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Peter Lamborn Wilson é historiador, escritor e poeta, pesquisador do Sufismo bem como da organização social dos Piratas do século XVII, teórico libertário cujos escritos causaram grande impacto no movimento anarquista das últimas décadas do século XX e início do século XXI. Wikipédia
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