3.2.12

Peter Lamborn Wilson (i): "Introdução ao Caminho Sufi"



De todas as linhas de pensamento, tradição e crença que compõem o universo islâmico, o sufismo em seu aspecto doutrinal sobressai como o mais intacto, a maior pureza islâmica: a linha central. Oponentes do sufismo freqüentemente acusam-no como tendo se originado fora do Islã, mas uma revisão minuciosa das várias escolas de filosofia e teologia, e uma comparação com o Islã “primordial” como revelado no Corão e no Hadith (discursos autênticos do Profeta Muhammad), provarão o clamor dos sufis pela centralidade, pela estrita aderência à original pureza da Revelação.

No contexto da história do pensamento, de fato, o sufismo — sempre insistindo em um retorno às fontes da Tradição — pode ser visto como para ter funcionado às vezes como uma reação positiva e saudável à atividade racional extrema dos filósofos e teólogos. Para os sufis, o caminho até o conhecimento espiritual — até a Certeza — nunca poderia ser limitado ao processo da atividade racional ou puramente intelectual, sem conhecimento sapiente[1] (zawq, “gosto”) e a experiência imediata, direta do Coração. A Verdade, eles crêem, pode ser vista e descoberta somente com o completo ser de cada um; nem estiveram eles satisfeitos meramente em saber essa Verdade. Insistem numa total identificação: um “falecimento” do conhecedor no Conhecido, do sujeito no Objeto do conhecimento. Assim, quando no quarto/décimo século, o sufi Hallaj proclamou “Eu sou a Verdade” (e foi martirizado por isso pelas autoridades exotéricas), não violou o “Primeiro Pilar” do Islã, a crença na Unidade (tawhid), mas simplesmente declarou a verdade desde a boca da Verdade. Então os sufis crêem.

Essa insistência do envolvimento total na realização “mística”, e no entendimento participativo da doutrina religiosa, distinguiu agudamente o sufismo de outras escolas islâmicas de saber. De fato, considerando eles mesmos a verdade do Islã, os sufis apareceram como marginais não somente para os filósofos e teólogos, mas ainda para os Muslims “ordinários”. Suas peculiaridades, suas distinções, manifestaram-se em vários aspectos de suas vidas: suas atividades diárias, seu culto, relações sociais, e inclusive estilo ou meios de expressão. Como místicos de todas as Tradições, eles tenderam a refazer a linguagem e a forma para seus próprios propósitos, e como em todas as civilizações Tradicionais, a potência e direcionamento de sua expressão tendeu a escoar e permear outras áreas não diretamente relacionadas ao misticismo em sentido estrito: literatura, as artes e ofícios, etc.

Deixando esse Mundo Escondido

Buda fundou seu Caminho sobre o fato humano do sofrimento. O Islã dá à situação básica na qual nos encontramos uma interpretação um pouco diferente: o homem em seu estado ordinário de consciência está literalmente adormecido (“e quando ele morre ele desperta”, como Mohammad disse). Ele vive em um sonho, seja diversão ou sofrimento — uma existência fenomenal e ilusória. Somente seu ser inferior está desperto, sua “alma carnal”. Sinta-se ou não assim, é miserável. Mas potencialmente a situação pode ser mudada, pois em última instância o homem não é idêntico ao seu ser inferior. (O Príncipe de Balkh, Ibrahim Adham, perdido no deserto enquanto caçava, perseguiu um cervo mágico, que se virou pra ele e perguntou, “Você nasceu pra isso?”) A autêntica existência do homem está no Divino; ele tem um alto Ser, que é verdadeiro; ele pode alcançar felicidade, ainda antes da morte (“Morra antes que tu morras”, disse o Profeta). O chamado vem: ao vôo, migração, uma jornada além das limitações do mundo e do ser.

Despertar

Aprisionada na jaula do mundo (o mundo em seu sentido negativo, “mundano”, não em sentido positivo de mundo-como-ícone ou Manifestação Divina), o homem está exilado e esquecido de seu verdadeiro lar. Para tomar sua parte no Pacto[2], para ser fiel à sua promessa, ele deve atacar o Caminho desde o sono ao despertar. É só o raro santo pra quem esse Caminho dura não mais que um único passo, embora em teoria tudo que é preciso é “dar a volta” ou “virar ao avesso” e ser o que cada um é. Para muitos perscrutadores o Caminho é longo; um sufi fala sobre “uns milhares e um” diferentes passos.

“Todas as coisas perecem, salvo Sua Face”; o primeiro passo do Caminho é começar a contemplar a futilidade do mundo de pó, o mundo em que o ser inferior de cada um está condenado. O perscrutador tem de renunciar a tudo isso, inclusive ao próprio ser, e buscar este que é Eterno, Sempre o Último. Precisa viajar desde as coisas rumo ao Nada, desde a existência rumo a Não-Existência.

Quantos caem fora de propósito? Nosso estado presente é de um esquecimento em direção ao Divino — o verdadeiro Ser — e de lembrança das relações mundanas e do ser inferior. A cura para isso é uma re-volta: lembrança do verdadeiro Ser, o Divino interior, e o esquecimento em direção a todas as demais coisas.

No sufismo, a técnica básica para isso é a invocação ou “lembrança” (zekr) do Nome Divino, que é misteriosamente idêntico ao Ser Divino. Através dessa disciplina os fragmentos de nossas mentes sem direção são re-reunidos, nosso impulso externo tornado ao interior e concentrado. Este é o ato dum amante que não pensa em nada exceto em seu bem-amado.




Traduzido a partir do original em: http://hermetic.com/bey/




[1] Apesar da palavra poder remeter ao conhecimento erudito, note-se que a raiz latina sap- introduz a idéia de conhecimento pela experiência sensorial, e foi o adjetivo sapiential o usado por Wilson. O sap- latino origina em português os vocábulos saber e sabor. (N.T.)
[2] Covenant no original, que diz respeito, teologicamente falando, às promessas de Deus aos homens. (N.T.)

_____________________________

Peter Lamborn Wilson é historiadorescritor e poeta, pesquisador do Sufismo bem como da organização social dos Piratas do século XVII, teórico libertário cujos escritos causaram grande impacto no movimento anarquista das últimas décadas do século XX e início do século XXIWikipédia
_______________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fala o que queres. Tudo é da lei.

>>columnéticas