9.4.12

A Nação Sitiada

Rob Sato
O que significa esse homem que aí vai pelo meio da rua, vestido de terno e carregando um galão branco semitransparente meio cheio — ou meio vazio, isto depende de otimismo — de sei lá o quê? O que significa esse homem que vai pela rua despercebido?

A vida segue, ninguém o vê, não há nada que reparar. Rua cheia, ali, além da esquina, na sede do governo, soldados, às dúzias, asseguram a visita do grande imperador que com mãos de plástico impera sobre a nação dominada, nação sitiada.

O homem para na esquina. Usa terno, mas não é executivo. Formou-se de não se formar um contemplador, monge, homem que é e basta-se. Será que se vestiu executivo para enfim deixar de ser? Ele respira fundo. Depõe o galão no chão — uma criança, sem que ninguém perceba, arrastada pela mão da mãe, percebe o homem que é, fazendo. Há na garrafa, a criança cheira, o mesmo que seu tio no verão passado colocou num tubo da caminhonete avermelhada e fuzilada de ferrugem —, deposto o galão, procura nos bolsos alguma coisa que, num gesto talvez de alívio, talvez de arrependimento, talvez de autocensura, quase não acha. Toma na mão o pequeno objeto brilhante. Daqui desta distância não posso ver muito, daqui através dos quilômetros quase nada vejo, só através daqueles que o percebem; poucos. E por que eu me deteria em sua imagem borrada, brocado de ossos, punhado de pele?

Ele devolve o objeto ao bolso. Abaixa-se. Pega o galão e, elevando-o sobre a cabeça, despeja todo o conteúdo em cima de si. Banha-se do plasma de plaquetas do sangue da terra. Encharca-se.

Calmamente e encharcado de gasolina ele avança em meio à multidão de repórteres, soldados, transeuntes que agora o percebem com os narizes. Ele para novamente. Suas mãos tremem. E tremendo ele retira o excesso de gasolina do rosto; cospe um pouco. Leva a mão direita ao bolso. E tira, tremendo mais, o isqueiro brilhante. Já o veem e observam os soldados da guarda, fuzis nas mãos, gritam ordens de atenção em língua estrangeira, essa língua que não é minha, eu me recuso a entender; tergiverso. Um soldado, dedo no gatilho, aponta; alguém grita “é gasolina!”. Agora o veem. Ele, o centro da atenção e das câmeras.

Quase não controla os gestos e, com sacrifício rola o isqueiro que não acende; uma, duas, três e no agouro do quatro ascende e já das mãos de dedos encharcados as chamas lambem. O homem continua parado enquanto as chamas o abraçam e o envolvem numa dança azul, rápida; um estertor de luz que ofusca o segundo.

Sanna Dulaway (coloring by Photoshop) sobre autor desconhecido (p&b)

E já são vermelhas as chamas. Queimam a carne, pouca, e a roupa que gruda na pele, derretendo e vaporizando no fumo negro. O homem que fez grita. Jaz nu, despido de seu fazer, sendo novamente; sendo a morte, ele grita com o horror da dor.

O que significa este homem que queima? O que significa sua morte, imolação sem impulso? Que quer dizer este terror de morrer matado por si através do fogo?

O homem rola no chão, incendiado por si. Tentam acudi-lo batendo nele com casacos e ele levanta-se e abraça soldado. Os dois queimam abraçados. O guarda pede socorro. O homem que fez, rosto desfigurado grita em seu rosto.

O incendiário é fuzilado. Socorrem o soldado.

Um corpo queima na rua. Que significa o corpo que queima?

Um protesto. Simples. Esquecido em duas semanas. O homem não significa nada.


A nação continua sitiada. A nação nunca saciada. A nação nunca sitiada.


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