Rob Sato |
O que significa esse homem que aí vai
pelo meio da rua, vestido de terno e carregando um galão branco
semitransparente meio cheio — ou meio vazio, isto depende de otimismo — de sei
lá o quê? O que significa esse homem que vai pela rua despercebido?
A vida segue, ninguém o vê, não há nada
que reparar. Rua cheia, ali, além da esquina, na sede do governo, soldados, às
dúzias, asseguram a visita do grande imperador que com mãos de plástico impera
sobre a nação dominada, nação sitiada.
O homem para na esquina. Usa terno, mas
não é executivo. Formou-se de não se formar um contemplador, monge, homem que é
e basta-se. Será que se vestiu executivo para enfim deixar de ser? Ele respira
fundo. Depõe o galão no chão — uma criança, sem que ninguém perceba, arrastada
pela mão da mãe, percebe o homem que é, fazendo. Há na garrafa, a criança
cheira, o mesmo que seu tio no verão passado colocou num tubo da caminhonete
avermelhada e fuzilada de ferrugem —, deposto o galão, procura nos bolsos
alguma coisa que, num gesto talvez de alívio, talvez de arrependimento, talvez
de autocensura, quase não acha. Toma na mão o pequeno objeto brilhante. Daqui
desta distância não posso ver muito, daqui através dos quilômetros quase nada
vejo, só através daqueles que o percebem; poucos. E por que eu me deteria em
sua imagem borrada, brocado de ossos, punhado de pele?
Ele devolve o objeto ao bolso. Abaixa-se.
Pega o galão e, elevando-o sobre a cabeça, despeja todo o conteúdo em cima de
si. Banha-se do plasma de plaquetas do sangue da terra. Encharca-se.
Calmamente e encharcado de gasolina ele
avança em meio à multidão de repórteres, soldados, transeuntes que agora o
percebem com os narizes. Ele para novamente. Suas mãos tremem. E tremendo ele
retira o excesso de gasolina do rosto; cospe um pouco. Leva a mão direita ao
bolso. E tira, tremendo mais, o isqueiro brilhante. Já o veem e observam os
soldados da guarda, fuzis nas mãos, gritam ordens de atenção em língua
estrangeira, essa língua que não é minha, eu me recuso a entender; tergiverso.
Um soldado, dedo no gatilho, aponta; alguém grita “é gasolina!”. Agora o veem.
Ele, o centro da atenção e das câmeras.
Quase não controla os gestos e, com
sacrifício rola o isqueiro que não acende; uma, duas, três e no agouro do
quatro ascende e já das mãos de dedos encharcados as chamas lambem. O homem
continua parado enquanto as chamas o abraçam e o envolvem numa dança azul,
rápida; um estertor de luz que ofusca o segundo.
E já são vermelhas as chamas. Queimam a
carne, pouca, e a roupa que gruda na pele, derretendo e vaporizando no fumo
negro. O homem que fez grita. Jaz nu, despido de seu fazer, sendo novamente;
sendo a morte, ele grita com o horror da dor.
O que significa este homem que queima? O
que significa sua morte, imolação sem impulso? Que quer dizer este terror de
morrer matado por si através do fogo?
O homem rola no chão, incendiado por si.
Tentam acudi-lo batendo nele com casacos e ele levanta-se e abraça soldado. Os
dois queimam abraçados. O guarda pede socorro. O homem que fez, rosto
desfigurado grita em seu rosto.
O incendiário é fuzilado. Socorrem o
soldado.
Um corpo queima na rua. Que significa o
corpo que queima?
Um protesto. Simples. Esquecido em duas
semanas. O homem não significa nada.
A nação continua sitiada. A nação nunca
saciada. A nação nunca sitiada.
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