Dave McKean [aqui] |
Introdução — Da poesia enquanto fenômeno
A poesia é algo que apenas se realiza quando lido; de preferência em alta voz. E quando lida para um público, o que convencionalmente se espera são os aplausos; mas, em verdade, o que de fato se espera é a emoção da platéia que a fez romper o eterno silêncio breve que assalta aos ouvidos de todos ao fim da fala do rapsodo, como se o espanto fosse tanto que fosse preciso acabar com sua influência, rompendo o silêncio. Esta emoção é a verdadeira matéria-prima da poesia – e de toda a arte –, seja ela a mais cerebral de todas ou não. Os gregos possuíam uma palavra que traduzia perfeitamente este processo: páthos, a experiência, o acontecimento, o infortúnio. Assim, a poesia é um fenômeno – ou antes, é provocada por um fenômeno – e deve ser abordada como tal.
Sartre[1] já aborda a questão fazendo o que chama de um “esboço” duma teoria fenomenológica da emoção. A busca fenomenológica da emoção já vai dizer de sua própria natureza, o fenômeno (do grego fainómenon, de faíno, mostrar-se): o aparecimento, o acontecimento que é de natureza diametralmente diferente do fato. O fato é sempre estático, conclusivo, indiscutível. O fato é feito: é a ação concluída; é particípio, portanto, nome, substantivo que diz exatamente do que é essencial na coisa, seu ser, sua essência. O acontecimento acontece, é sempre sendo. A coisa a mostrar-se simplesmente: o fenômeno. I.e., acontecimento, apesar de substantivo, possui um significado indissociável do aspecto verbal infinitivo, quero dizer, da significação atualizante que lhe é própria. A intenção é a símile entre o substantivo e o verbo. Então, se a emoção é um fenômeno, pressupõe Sartre que ela é sempre “ativada” por um fator externo ao sujeito, ou seja, uma sensação provoca a emoção. Assim, diz Sartre que a emoção “é uma transformação do mundo” e que esta ação “não é consciente enquanto tal, pois então seria objeto de uma reflexão”, o que não pode haver dentro da fenomenologia da emoção mesmo porque nossa tendência reflexiva sempre se faz uma tentativa de desfazer a emoção, não de construí-la. (Esta constante tentativa de desconstrução da emoção é uma reminiscência da teoria de Platão da verdade como o Bem alcançado pela epistéme, ciência, e pela dialética, ou seja: pela razão, do lat. ratio, a medida das coisas. Platão nega as emoções e o sentir como verdade para afirmar o método científico como o único capaz de alcançá-la. [E, ironicamente, o método cartesiano parte da senciência, i.e., o limite último da dúvida é o conhecimento imediato, o saber o sabor, sapere.] Antes a verdade era tida exatamente como “aquilo-que-surge-e-se-esconde”; a verdade era dada pela presença e ausência.) Digressões a parte, Sartre nos dirá ainda que a emoção
“busca conferir ao objeto, por ela mesma e sem modificá-lo em sua estrutura real, uma outra qualidade, uma menor existência ou uma menor presença”.
Apesar de Sartre generalizar a emoção – “conduta mágica” em suas palavras – como algo que tem origem numa “degradação espontânea e vivida da consciência diante do mundo”, tomaremos o que ele diz unicamente sobre o surgir da emoção dispensando as críticas, porquanto elas não nos caibam aqui. Então, baseando-nos nas palavras de Sartre, podemos definir um diagrama do surgimento da emoção:
sentimento > emoção > sentido > sentimento
A todo o momento somos impressionados, através de nossos vários sentidos, pelas coisas que nos cercam; somos afetados com afeição às coisas, aí reside o sentimento. Esta é a primeira maneira de conhecer: saber o sabor, saborear (do lat. sapere, saber; resultou também no italiano sapore, sabor). Entanto, como somos uma espécie que, como já disse Aristóteles, desenvolvemos o conhecimento aliado à memória, lembramos sempre de nossas sensações e das sensações que nos foram ensinadas: eis a cultura. Portanto, como diz Gilvan Fogel[2], vemos sempre a partir de afeto, e não com afeto, i.e., deixando que as coisas nos provoquem afeição. Sempre nos dirigimos às coisas para senti-las de determinado modo esperado de antemão. E quando nós, objetos sencientes, somos sujeitados pela coisa, sujeito imanente, abate-se-nos uma tensão que nos causa a emoção, o páthos. (Sartre dirá que essa tensão é o estopim da emoção que sempre tentará degenerar a própria consciência do indivíduo resultando numa “conduta de fracasso” a fim de resolver a tensão.) A tensão que há na resposta que a coisa nos dá por nossa busca senciente de saber: a resposta, a coisa posta que já se apresenta como questão, afinal o substantivo é essencialmente tudo o como a coisa se apresenta, e não adjetivações, é o páthos, é a emoção provocada. Essa emoção é posteriormente substituída pela consciência que busca dar sentido, significação, direção às coisas. Sartre dirá que esta atitude é a consciência da emoção, porquanto a emoção já é um modo de consciência do real e que toda atitude gerada pela emoção é irrefletida, i.e., a consciência não tem consciência de si-própria na emoção e na atitude. Mas a emoção, o páthos, é sempre um momento, páthos é acontecimento, é infortúnio e, passado o momento, o acontecimento, a consciência volta-se sobre si e em relação ao fato ocorrido. A consciência refletindo, refletida, traça sobre si e sobre o fato da emoção uma significação e uma direção: sentido que é capaz de gerar um outro sentimento, dada a concretização do sentido. Isto ocorre porque, em verdade, todo símbolo é concreto, porquanto pode de fato ser sentido, saboreado: se o símbolo é capaz de gerar emoção, é justamente porque ele é concreto. As palavras genéricas são símbolos – ou antes, signos, como dirá Saussure – porquanto concentram em si toda a gama de especificidades e características duma grande “classe” de coisas; a exemplo o amor: tantas são as formas de manifestação desse sentimento que não somos capazes de abarcar toda a gama de especificidades acerca do amor apenas na palavra amor. Dessa maneira propicia-se um ciclo ininterrupto de pasmo.
Páthos é o “acontecimento”, “infortúnio”, “estado agitado de alma”, “paixão (boa ou má: prazer, amor, tristeza, ira etc.)”, é a “expressão apaixonada”, o “patético”, o emocionante. Mas antes de tudo isso, páthos é “o que se experimenta; prova, experiência”. Páthos é pasmo. Páthe é a enfermidade, aflição, estado passivo e pathaíno é apaixonar-se. E tomando as palavras de Aristóteles na Metafísica, “é pela experiência que os homens adquirem a arte e a ciência”, o páthos é condição para a presença de poesia. A criatividade só tem exercício no páthos. É o páthos também que, nas palavras de Aristóteles, propicia a ciência – afinal de contas, a poesia é a avó da ciência e mãe da filosofia –. Então nosso diagrama deixa de abordar apenas a natureza da emoção, mas passa a falar da natureza do modo mais básico de saber. E, sendo assim, todo este saber está condicionado ao fenômeno. A poesia é puro fenômeno. E o poeta é aquele que se apaixona, o poeta é aquele que sofre o infortúnio de estar imerso no ciclo representado por nosso diagrama, que significa que ele é aquele que sofre do pasmo, do deslumbramento epifânico de vislumbrar um pouco mais do Mistério. Para Sócrates, no Íon de Platão, o poeta é justamente aquele que perde o senso para cantar apaixonadamente a palavra dos deuses.
É com tal abordagem – pretensiosamente fenomenológica – que buscaremos conhecer como o poético se dá em Fernando Pessoa, e como Pessoa, em cada um de seus heterônimos, entende a poesia e o poeta.
Um Eu que não Ele-Próprio
Como já disse Álvaro de Campos, “há frases repentinas (...) que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição”, o poema “Autopsicografia” é, assim como denota seu título, a definição da obra pessoana. É a psicografia o ato de escrever sob os auspícios de outrem; o Eu pessoano psicografa as palavras dum Eu que há dentro de si, ou seja, autopsicografa. Assim, FP divide sua individualidade ortônima em dois “Eus”. Quero dizer que aqui o poeta, o sujeito lírico Fernando Pessoa, põe-se duplamente como sendo dois sujeitos líricos não heterônimos, mas ortônimos. (Aqui certamente há a primeira proposição pessoana à transposição do sujeito lírico para fora si, a multiplicação do indivíduo uno em “cada emoção e idéia personificada”; o fazem também Sá-Carneiro e Rimbaud.) Além disto, “Autopsicografia” configura, ou melhor, “define sem definição” o acontecer poético:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim, nas calhas de roda
Gira a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
O poema estrutura-se em dois movimentos. No primeiro (correspondente às duas primeiras estrofes) o sujeito lírico, falando sempre em terceira pessoa – como por todo o poema, aliás –, faz apenas proposições racionais, como em um tratado filosófico, chegando ao ponto no primeiro verso que sintetiza o teorema, a hipótese: “O poeta é um fingidor.” A começar, o poeta não é ele, é um outro do qual está distante – o qual ele psicografa? –, que ele busca definir por meios racionais, o que já é uma oposição à própria psicografia, que é por definição um estado alterado de consciência, um transe mediúnico; tal oposição será retomada adiante no poema... Indo além, a palavra fingidor vem do lat. fingĕre, que diz, dentre muitas acepções: “esculpir”, “criar”, “compor (obra literária)”, “adestrar”, “plasmar” etc., dirá, no poema de Pessoa, que o poeta é um escultor, que o poeta é um criador de figuras, que é ficcional – a heteronímia –. Num texto dedicado a memória de Sá-Carneiro, que se suicidou em 1916, Pessoa, além de divinizar o poeta, reafirma o dito acima:
Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino. (...)[3]
No mesmo texto, Pessoa dirá ainda que o poeta sente-se semelhante aos deuses sem poder sê-lo dada sua natureza humana diferente e oposta aos deuses. E esses dons doados pelo amor divino ao poeta sempre o fazem morrer, mesmo estando vivo. A morte é então o próprio Mistério. Portanto o páthos – o deslumbramento e a dor, a angústia –, é o encontro com o Mistério, é o encontro com a Morte mesmo em vida. E deste páthos FP falará a partir do segundo verso dizendo que o poeta finge, figura, esculpe, “tão completamente”, i.e., tão verdadeiramente, “Que chega a fingir que é dor”, que é páthos, “A dor”, páthos, “que deveras sente.” Ou seja, aí se define o fazer do poeta que sente um páthos, mas que para falar dele cria outro páthos diferente. O fazer poético, no sentido etimológico do termo, i.e., criar…
Adiante pela segunda estrofe, o poeta tratará do processo de percepção deste texto que por si só configura um páthos diante do leitor. “Os que lêem o que escreve” percebem um páthos que não é propriamente o páthos que o poeta escreveu, nem tampouco o que ele sentiu, mas outro que se dá exclusivamente em cada leitor. Daí podemos supor que o páthos sentido pelo poeta também não foi exatamente o que ele viu, ou melhor, que sua emoção desencadeada por um sentimento, não corresponde exatamente às características sensíveis da coisa sentida.
No segundo movimento do texto, no qual enfim o poeta utiliza uma metáfora, não aparece nenhuma das palavras anteriormente usadas no texto. O Eu que fala parece outro, é um Ego subjetivo e metafórico que além de ratificar a proposição inicial do Ego objetivo, emenda uma nova significação conclusiva: o “comboio”, trem, “de corda”, gira suas rodas nos trilhos (“calhas de roda”), a entreter a razão, a medida. Na estrofe ele deixa bem claro quem é o “comboio de corda” e quem são as “calhas de roda”: coração, emoção; razão, medida, respectivamente.
Assim termina a “Autopsicografia”, apresentando os dois sujeitos líricos de Pessoa ortônimo: o hermeneuta, patético e o exegeta, racional, demonstram o funcionamento do fenômeno poético, ou seja, o estado passivo diante do real, páthos (sentimento/emoção) seguido da reflexão (sentido) que gera uma outra impressão, um outro páthos. São, por essa duplicidade egocêntrica, os poetas, de acordo com as palavras do próprio Pessoa, estrangeiros em qualquer dos mundos, dos deuses ou dos homens, da emoção ou da razão:
No herói, no santo e no gênio os Deuses se lembram dos homens. (...) Os Deuses são amigos do herói, compadecem-se do santo; só ao gênio é que verdadeiramente amam. (...) Assim ao gênio caberá, além da dor da morte da beleza alheia, e da mágoa de conhecer a universal ignorância, o sofrimento próprio, de se sentir par dos Deuses sendo homem, par dos homens sendo deus, êxul ao mesmo tempo em duas terras.[4]
Para ele o poeta vive sempre num entremundo tomado pelo páthos, preso às calhas de roda como comboio de corda. Sempre ludibriando a razão e racionalizando a emoção, num eterno jogo metafórico e criador interminável.
O sentir e o pensar que estruturam todo o jogo heteronímico da obra pessoana refletem o diagrama aqui proposto. Entretanto, no poema em questão o fenômeno já surge invertido, quero dizer da reflexão gerando o páthos, inversão da dinâmica básica da obra ortônima. A tensão destes movimentos do diagrama é o jogo heteronímico e cada um dos quatro principais heterônimos pessoanos, inclusive o ortônimo, vão, cada qual a sua maneira, expor o nascimento da emoção e do saber proposto por nós.
[1] Todas as citações de Sartre feitas sob o presente título são de: Sartre, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Ed. L&PM.
[2] In: O desaprendizado do símbolo — a poética do ver imediato. Revista Tempo Brasileiro.
[3] Pessoa, Fernando. Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). In: Sá-Carneiro, Mário de. Todos os poemas. Ed. Nova Aguilar.
[4] Idem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fala o que queres. Tudo é da lei.